domingo, 25 de abril de 2010

A EXPRESSÃO "EU SOU" NO EVANGELHO DE JOÃO

Seu Contexto Bíblico e Implicações Cristológicas

Tiago Abdalla T. Neto

           Há uma percepção entre os estudiosos do Novo Testamento, de que a cristologia apresentada pelo evangelho de João aprofunda e expressa, de forma mais clara que os outros evangelistas, a divindade de Jesus (cf. 1.1, 18; 20.28). Ali, por exemplo, encontramos a declaração direta de Tomé, após se deparar com o Jesus ressurreto:  κύριός μου καὶ  θεός μου. (“Senhor meu! E Deus meu!”) (Jo 20.28).

Além disso, salta-se aos olhos de qualquer leitor cuidadoso o uso constante da expressão ἐγώ εἰμι (“Eu sou”), a qual aparece vinte e quatro vezes em João, sempre nos lábios de Jesus e varia em seu significado, dependendo do contexto que está inserida (cf. Jo 4.26; 6.20, 35, 41, 48, 51; 8.12, 18, 24, 28, 58; 9.9; 10.7, 9, 11, 14, 25; 13.19; 14.6; 15.1; 15.5; 18.5, 6, 8). Distinguem-se dois usos da fórmula “Eu sou” por Jesus. Um deles é acompanhado por predicados, tais como “Eu sou o pão da vida” (6.20), “Eu sou a luz do mundo” (8.12), “Eu sou a porta das ovelhas” (10.7), “Eu sou o bom pastor” (10.11), “Eu sou a ressurreição e a vida” (11.25), “Eu sou o caminho, a verdade e a vida” (14.6), “Eu sou a videira verdadeira” (15.1).
    

Outro uso da expressão ἐγώ εἰμι é o absoluto (sem um predicado) e aparece de modo muito sugestivo, cujo cenário de origem deve remontar a Êxodo 3.14 e às suas várias ocorrências no Antigo Testamento:

O fundo contextual para as declarações “Eu sou”, especialmente as usadas de modo absoluto, não deve ser encontrado no mundo helenístico, mas no Velho Testamento (Êx 3.14), e em Isaías, Deus deve ser reconhecido como “Eu sou” (Is 41.4; 43.10; 46.4, etc.). Stauffer argumenta que esta expressão é a “mais autêntica, a mais autocrática, a mais audaciosa e a mais profunda afirmação, procedente de Jesus, a respeito de quem ele era”. Através desta expressão peculiar, Jesus elevou-se muito acima de todas as expectações messiânicas contemporâneas aos seus dias e vindicou que a epifania histórica de Deus estava ocorrendo em sua vida ... parece que está acima de qualquer questionamento que, através do uso da expressão egw eimi em sua forma absoluta, Jesus está, em um sentido bem real, identificando-se com o Deus do Velho Testamento.

domingo, 18 de abril de 2010

DISPENSACIONALISTAS TAMBÉM PENSAM: exegese e escatologia em Marcos 13.14-23

Parte 2


13. ... (15) quem estiver em cima, no eirado, não desça nem entre para tirar da sua casa alguma coisa; (16) e o que estiver no campo não volte atrás para buscar a sua capa.
(17) Ai das que estiverem grávidas e das que amamentarem naqueles dias!  (18) Orai para que isso não suceda no inverno. (19) Porque aqueles dias serão de tamanha tribulação como nunca houve desde o princípio do mundo, que Deus criou, até agora e nunca jamais haverá. (20) Não tivesse o Senhor abreviado aqueles dias, e ninguém se salvaria; mas, por causa dos eleitos que ele escolheu, abreviou tais dias.

A segunda parte do texto bíblico, em análise, desta série (1o. Artigo, clique aqui) nos informa que a grande tribulação virá de forma tão iminente e brusca que “pegará” muitos de surpresa, a ponto de que os que estiverem em cima de suas casas, talvez dormindo ou realizando alguma atividade (os telhados eram planos e muito do dia-a-dia ocorria ali), precisarão fugir, deixando tudo para trás, sem levar nada consigo (v. 15). Da mesma forma, os que estiverem trabalhando no campo precisarão fugir, sem sequer levar consigo sua capa, para se aquecerem durante a noite fria nas montanhas (v. 16). Grávidas e mulheres que amamentarem encontrarão maior dificuldade pela urgência da fuga e a necessidade de correrem com seus bebês (v. 17). O inverno na Palestina é uma estação de muita chuva, em que os rios transbordam e os caminhos, enlameados, tornam-se quase intransitáveis (v. 18). Este será um momento de tribulação intensa, sem igual em época alguma (v. 19; cf. hai hemerai ekeinai thlipsis com v. 24), mas  já prevista por Jeremias e Daniel, como um momento que antecederia a salvação de Israel e o fim dos tempos (Jr 30.7ss; Dn 12.1ss).
Digno de nota é que ambas as profecias do AT são um prenúncio de tribulação intensa, especialmente, sobre a nação de Israel. A profecia do Senhor Jesus parece se apoiar nesta perspectiva, pois, faz referência especificamente aos moradores da Judéia (v. 15), cujo clima no inverno dificultaria, em muito, a fuga (v. 18), e fala de uma tribulação enorme que antecederá um momento de poderosa salvação para os seus eleitos (vv. 19, 24-27).
Outro paralelo textual, que não pode ser deixado de lado, é a descrição encontrada no livro de Apocalipse, capítulo 12, em que uma mulher que representa a nação de Israel (Ap 12.1 com Gn 37.9-11; Ap 12.5 com Rm 9.1-5) foge de uma perseguição promovida pelo próprio Satanás (vv. 6, 13-14), quando pouco tempo lhe restava, antes de ser vencido (Ap 12.12; cf. 19.19 – 20.3).
Nada disso foge da providência divina, que cuida e se preocupa com seus eleitos (v. 20), uma expressão tanto para Israel (1 Cr 16.13; Sl 105.43; Is 65.9, 15) quanto para gentios salvos e participantes da Nova Aliança (1 Pe 1.1; 2 Tm 2.10; Cl 3.12). Foi Deus quem determinou a brevidade deste período, a fim de salvar Seu povo de tal tribulação. A soberania divina, todavia, não anula a responsabilidade destes eleitos de orarem e clamarem pela misericórdia de Deus num período de tamanha provação (v. 18).
Adolf Pohl questiona o fato de que, se Marcos 13.14-23 trata sobre a grande tribulação, por que o texto não apresenta esta tribulação alcançando o mundo inteiro? (POHL, p. 372). Mas ele ignora um detalhe do verso 20, que diz que, caso tais dias não fossem abreviados, “toda a carne não se salvaria” (ouk esothe pasa sarx), sendo que “toda carne” (pasa sarx) é uma expressão bíblica para indicar a humanidade em sua totalidade (cf. Lc 3.6; Gl 2.16; 1 Pe 1.24). 

DISPENSACIONALISTAS TAMBÉM PENSAM: exegese e escatologia em Marcos 13.14-23

PARTE 1


"Quando vocês virem ‘o sacrilégio terrível’ no lugar onde não deve estar — quem lê, entenda — então, os que estiverem na Judéia fujam para os montes." (Marcos 13.14)

A PROFANAÇÃO DO TEMPLO

Em textos passados,  no "Fundamentalismo e Reforma", observei que os acontecimentos descritos pelo Senhor Jesus em Marcos 13.1-13 se relacionavam não com eventos necessariamente ligados ao término dos tempos, mas à destruição do templo, em 70 A.D., e ao todo do período da igreja, precedente à grande tribulação e à vinda de Cristo. A partir do verso 14, o Senhor Jesus parece descrever eventos ligados aos finais dos tempos. Primeiramente, porque o texto fala sobre uma tribulação tamanha, tal qual não houve antes e nunca haveria igual (v. 19). Além disso, o verso 24 nos dá uma chave para interpretar os acontecimentos, pois, naqueles diasapós aquela tribulação, a vinda do Senhor Jesus ocorreria (en ekeinais tais hemerais metá ten thlipsin ekeinen - vv. 24-26). Assim, interpretar os acontecimentos como apenas ligados aos acontecimentos da guerra dos judeus e a eventual queda de Jerusalém, entre 66-70 A.D., é desconsiderar os dados do próprio texto.

Um dos acontecimentos ligados à grande tribulação final é o aparecimento do abominável da desolação, uma expressão originada no profeta Daniel (Dn 9.27; 11.31; 12.11cf. Mt 24.15) e que se relaciona ao término dos sacrifícios no templo e a profanação deste. Há uma relação desta expressão de Daniel com o que ocorreu na época dos Macabeus, em 167 a.C. (1 Mc 1.54-59; 6.7), quando um representante de Antíoco Epifânio ergueu um altar pagão sobre o altar de bronze do templo e sacrificou uma porca ali, em homenagem ao deus Zeus (cf. Dn 11). Mas, sabemos que esta profecia não se limita apenas a este acontecimento, já que Jesus fez referência a ela como algo a ocorrer no futuro.

Há uma disputa acirrada entre os comentaristas quanto ao momento do cumprimento desta profecia de Jesus. Vários dizem ter tal anúncio se cumprido durante a revolta judaica, entre 66-70. Alguns dizem que o “abominável da desolação” é a invasão do exército romano em Jerusalém e a destruição por eles do templo, no ano 70 A.D (ver HURTADO, NICB, p. 215-217). Outros dizem que isso ocorreu quando os zelotes instituíram Fani, um homem primitivo, como sumo-sacerdote e o fizeram entrar no santo dos santos (ver POHL, p. 372-373).

O grande problema com estas interpretações é que elas não levam em conta, o suficiente, as indicações, dos versos 19 e 24, de que estes acontecimentos se relacionavam com o fim dos tempos e que a expressão “mas” (), em 13.14, aponta para um contraste entre os acontecimentos de 4-13 e os de 14-23.

Daniel, também, relaciona o aparecimento do “abominável da desolação” com o final dos tempos, quando o povo de Deus será purificado por Ele e, então, liberto (Dn 12.1-3, 9-12). Além disso, o apóstolo Paulo menciona uma cena muito semelhante, quando o Anticristo se assentará no “santuário de Deus” e reivindicará para si a própria divindade, mas será destruído pela vinda do Senhor Jesus (2 Ts 2.3-4, 7-10). Este último texto se assemelha muito com a cena de Marcos 13, que fala do “abominável da desolação” se colocando “no lugar em que não deve” (v. 14) e, logo após a tribulação de tais dias, o Senhor Jesus vindo para salvar seu povo (vv. 24-26).

O sinal claro, então, dos fins dos tempos não é, necessariamente, guerras ou terremotos, ou fomes ou falsos profetas. Mas, sim, a revelação do Anticristo e sua profanação do templo de Deus, em Jerusalém. Qualquer alarde desvinculado disso é jogar tempo fora e perder de perspectiva a nossa missão (vv. 9-11).